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domingo, 5 de setembro de 2010

Do estranho tribal ao estranho moral

Do estranho tribal ao estranho moral

Como é formado maya



Swami Krsnapriyananda Saraswati

Gita Asrama

2010


Superando o primitivismo

O termo “estranho moral” é utilizado por Tristan Engelhardt aplicando-o as questões de Bioética. Mas em nosso texto iremos um pouco mais além. Se vai utilizar alguns conceitos de Antropologia Cultural, e Antropologia Psicológica do Desenvolvimento, tendo em vista introduzir um tema que no Sanatana Dharma é de suma importância, ou seja, trata-se de “maya”, ou primitiva e original noção de “eu” e “meu”.


Compreendendo o tema

Pelo ponto de vista antropológico do desenvolvimento, do indivíduo frente ao perguntar pelo transcendente, podemos ver que nos povos habitantes de cavernas, ainda que o registro seja de alguns rabiscos macarrônicos em paredes, que a abstração “eu” e “mundo”, dá-se muito recentemente. É tal o empreendimento numa unidade entre o indivíduo e o que ele faz que não se distingue sujeito de objeto em si. Numa criança podemos ver isso na forma como ela vê seus pais nos primeiros anos de vida. Nosso propósito aqui não é aprofundar nem tampouco fazer alguma apologia ao pensamento psicanalítico, nem mesmo a Epistemologia Genética de Jean Piajet, contudo, estes autores já consagrados no campo do desenvolvimento psicológico, nos deixam claro que uma criança não separa seu corpo do corpo de sua mãe, nem tampouco o que o pai e a mãe discutem ou comentam como sendo algo dissociado ou distante dela mesma. No momento, interessa-nos apenas citar o chamado Estágio Sensório-Motor defendido por Piajet. Conforme comenta o autor, o estágio mencionado dá-se entre 0 (zero) aos dois (2) anos de idade. Neste estágio, diz Piajet, “A criança busca adquirir coordenação motora e aprender sobre os objetos que a rodeiam”, por isso é chamado de período mais elementar. “É o período em que a criança capta o mundo pelas sensações; o bebê pequeno não separa o eu do objeto; é como se ele e o mundo fosse uma coisa só”. Com Freud o desenvolvimento da criança está anexado com a psicossexualidade. Então a criança tem uma fase de desenvolvimento fixada de acordo com seu desenvolvimento oral, anal, fálico, latente e por fim, genital. É claro que Jean Piajet foi o pioneiro na observação do comportamento e na maturação do “eu” no desenvolvimento da criança, mas além dos aspectos apontados por ele, depois complementados por Freud, há um outro aspecto não menos importante da personalidade chamado “moral”. Este termo componente da personalidade chamado “moral” é também um termo sujeito a interpretações e compreensões distintas. Em nosso caso, nos interessa conhecer a moral subjetiva, aquela que nasce dentro de uma cultura, e permanece como um valor dentro da mesma. nós sabemos que há uma moral objetiva e que ela é chamada de "moral natural", ou "ética natural", mas o ser humano é mais do que sua biologia, pelo menos o conceito de humano transcende a simples imediatiade da busca da gratificação dos sentidos, comum entre os animais irracionais.  Lawrence Kohlberg debruçou-se sobre a questão do “desenvolvimento moral”, partindo da forma construcionista iniciada por Piajet. Então ele enumerou seis estágios, os quais tem em si um grau de aprofundamento que se considera “desenvolvimento”. Estes estágios agrupados em três níveis se resumem em, “Nivel I - Pré-convencional; 1) orientação ‘punição recompensa’ (como eu posso evitar a punição?’; 2) Orientação autointeresse ou ainda, hedonismo instrumental (o que eu ganho com isso?); Nível II – Convencional; 3) Acordo interpessoal e conformidade (normais sociais; orientação ‘bom-moço boa-moça’); 4) orientação ‘manutenção da ordem social e da autoridade’ (moralidade ‘Lei e Ordem’); Nível III – Pós-convencional; 5) Orientação ‘Contrato Social’; 6) Princípios éticos universais (Consciência principiada).

Percebemos que o assunto é amplo, profundo e que está em pleno estudo e buscas de respostas. Compreende-se perfeitamente que isso é também perfeitamente natural, uma vez que o “objeto”, ou seja, a pessoa humana é tão variável quantos indivíduos existam, e um mapeamento preciso e certo nos é impossível de ter na abolutidade. O homem é relativo. Mas há também algumas observações importantes na Biologia do Desenvolvimento que nos são eficazes numa elaboraçao de hipoteses. Observando o comportamento dos seres vivos nós também percebemos uma determinada “moralidade”. A questão é bastante interessante e notável, de modo que há defensores que dizem existir uma “ética natural”, ou uma “ética na natureza” ou mesmo uma "moralidade natural", também chamada de moralidade objetiva. Mas nossos olhos tendem a ver de acordo com os “óculos” da nossa leitura cultural. Portanto, ainda estamos bem longe de compreendermos estas questões de modo claro e bem resolvido. Aqui não tiramos as esperanças de um dia podermos vislumbrar a moralidade como critério tão experimental quanto a Química ou a Física, porém nos caberá modificar o conceito de ciências e ter um critério além de um método definitivo para tudo.

O homem primitivo

Quando olhamos o homem primitivo - entenda-se aquele que tem uma tecnologia primitiva - vemo-lo ocupado na sua manutenção imediata; não percebemos abstração alguma. os primeiros sinais de abstração podem ser notadas na era lítica, quando o homem inicia a usar pedra lascada para usar como arma. Isso significa que dedicou parte do seu tempo tendo em vista um objetivo, são então os primeiros sinais de abstração que encontramos. Como constatamos através do estudo do desenvolvimento psicológico de uma pessoa, é-nos bastante provável que uma clara separação entre sujeito e objeto foi se construindo lentamente na humanidade. Mas sair da simples sobrevivência para alcançar novos questionamentos além de si mesmo parece-nos um fenômeno exclusivamente humano. Nos animais em geral a Seleção é Natural, ou seja, aproximam-se por espécies, e subespécies de forma espontânea e independente da influência outra do que o que eles mesmos escolhem, com critérios naturais. Vemos então vários aspectos interessantes, por exemplo, peixinhos pretos com manchas brancas tendem a ver peixinhos pretos com manchas azuis como estranhos. Ainda que sejam da mesma espécie. Se colocarmos num aquário peixinhos da mesma espécie, mas com uma leve variação fenotípica este será rejeitado de imediato, ou até que algo ocorra de modo a permitir que faça parte do grupo. O mesmo observamos entre vários grupos de animais. Os macacos talvez sejam os mais notáveis. Eles possuem um conjunto de regras sociais bem características, e muitas delas lembram o homem primitivo. Separar o território, estabelecer limites, divisão de comida, de fêmeas, etc., é algo que está subministrado ao macaco chefe do bando. As lutas para ocupar o poder são constantes, e a idade pode influenciar na troca de um líder por outro, mas sabemos que se estabelece um pacto de tolerância na fase de transição com um macaco mais jovem, e que irá ocupar o lugar do mais velho, e quem está na liderança a mais tempo. Conjecturas a parte, o que nos interessa aqui dizer é que o conceito de maya é exatamente este conceito primitivo de colocar-se como “dono” de algo; separar por grupos, separar por cor (varna), ou por posição (asrama), e assim tomar uma posição a favor de um grupo, porque este grupo compactua comigo, e assim por diante.

A posição primitiva está calcada no ahamkara ou identificação objetiva corporal (eu sou o corpo e suas relações), de modo que não alcançou o estágio de Consciência Ética Universal, conforme a ideia de Kohlberg.

Diferentes pinturas, marcas e adereços em tribos indígenas
Nas tribos primitivas as diferenças eram marcadas por pinturas. Rosto, partes do corpo, corte do cabelo, etc., são diferenciadores como “pintinhas” nos peixes. Então o grupo se identificava pelo nascimento, criando um conceito natural de igual moral. O reconhecimento do outro, estabelecendo um pacto de tolerância e aceitação do estranho moral é algo bem recente, e talvez ainda esteja sendo uma busca ou meta a ser alcançada pela humanidade. É notável que dentro do homem está a sua natureza primitiva; o corpo tem suas bases biológicas fortes, ainda que a cultura venha aos poucos sobrepujando-se à biologia natural. Nós podemos ver isso em modernos supermercados nas cidades, ou grande lojas de departamentos, que na eventualidade de promoções, oportuniza que vejamos as pessoas agirem como se fossem à caça. De algum modo, podemos ver o instinto caçador ou coletor das pessoas diante das gôndolas de um supermercado. A comida que consomem também demonstra-nos isso. Contudo, todos sabemos que não será possível uma total substituição pela cultura da biologia material. Por mais que queiramos mudar o destino material ou biológico do homem, através da cultura ou da moral, sabemos que há um limite que é o seu próprio corpo. Isso é notável, também no caso daqueles que buscam dar saltos mais amplos como, por exemplo, ficar longos períodos fora da gravidade terrestre. Há missões tendo em vista ir e retornar do planeta Marte, por exemplo, e já se sabe que com a atual tecnologia que se tem disponível, que são necessários 7 meses de longa viagem da Terra até Marte. E nestes longos 7 meses de ida, e 7 meses de volta, de falta de gravidade terrestre, produzem-se sérias alterações na biologia do corpo, como perda muscular, descalcificaçãos, etc. E ainda que a consciência permaneça razoavelmente equilibrada, há também a possibilidade de alterações significativas na biologia neurológica, bem como psicológica. Portanto, o homem apesar de ser um ser resultado da cultura ele possui a sua biologia natural, e da qual não poderá prescindir totalmente. O homem é um ser da Terra, e dela não poderá livrar-se totalmente. Mas é neste “fundo” de biologia que percebemos a moralidade natural, aquela que é superada pela cultura. Compreender, aceitar, entender e até mesmo conviver com um estranho moral é um ato de educação, de cultura, de sobreposição do instinto segregacionista natural entre as espécies. É necessário um esforço extra animal, ou extra biológico para superar o estranho moral em “mim”. Este “esforço” é a educação, a “minha” educação diante da aceitação do estranho moral.

maya e o "eu/mim"

O aspecto maya ou “de mim”, ou “por mim”, é, portanto primitivo, de natureza biológica, tão animal como rejeitar um estranho entre a espécie. Primitivamente o estranho moral é visto como ameaça. Na visão do coletor caçador, o mundo é visto como objeto de propriedade, e aqueles que tentam, de algum modo, invadir o “meu” mundo, são rejeitados. Mais adiante, numa elaboração racional posterior, eles (os estranhos morais) podem ser o “mal”; podem ser impuros; inferiores; pecaminosos, e assim por diante. As respostas ao estranho moral podem ser muitas e mesmo múltiplas. “eu” e “meu” são conceitos tão primitivos como os de segregação de uma “pinta” entre peixes. Mesmo um peixinho está apegado ao seu habitat, porque de algum modo sua sobrevivência irá depender da manutenção do “seu” território. Maya é exatamente o mesmo que isso: segregar por “eu” e “meu”; um conceito tão perfeito que devemos ficar atentos a sua grande implicação.

As tribos primitivas se pitam de cores distintas, e assim reconhece-se os que são pertencentes à mesma tribo. É possível que um ou outro use algo que o distingue dos outros. Pode ser que o xamã use uma marca distinta que o distingue como tal, mas será aceito como alguém ou superior ou numa condição diferente de a maioria. Mas as “pintas” dos estranhos morais são vistas como ameaças para o primitivo.

As tribos religiosas dos dias atuais

Uma vez superada a fase primitiva da tribo, o homem primitivo ingressou numa “aldeia global”; mas logo se viu diante de estranhos morais, ou seja, pessoas que vivem outra moralidade, e esta outra moralidade está não apenas nos atos comuns, mas também na forma como se relaciona com o transcendente e o Absoluto. Se alguém tem uma relação com o transcendente diferente da “minha”, então primitivamente ele será considerado um estranho moral. É algo como a “pinta” dele é diferente da minha. Então o conceito de maya se realiza de forma sofisticada, porque não é na cor ou formato, que se está enfatizando a rejeição, mas na forma diferente de ou outro pensar. Reconhecer o pensamento do outro pode ser difícil, porém reconhecer o direito que ele tem de expressá-lo pode ser o primeiro passo para o reconhecimento do estranho moral. Mas o pobre de raciocínio nem a isto consegue alcançar, ele está preso a maya, “eu” e “meu”.

Os movimentos religiosos dos dias atuais são uma espécie de tribo. Dentro dos conceitos que apresentam encontramos a primitividade da segregação daquele quem pensa diferente. Não há espaço nem para o igual moral pensar diferente, muito menos para o estranho moral; “eu” e “meu” são os dois pilares do “mim mesmo” ou maya. De modo que as “tribos religiosas” dos dias atuais são mais que ópio ao povo, são opróbrios religiosos na humanidade. Antes sequer existissem. E os grupos religiosos de hoje são apologias ao egoísmo: meu grupo, meu altar; minha forma de ver e pensar Deus. O pensador não tem vez, porque é proibido pensar; a falsa moral então enumera uma série de “ofensas” as quais alguém de mente inquisitiva está sujeito a sofrer, caso coloque algo contrário ao pensamento da “tribo”. E quem não está com minha tribo está contra nós! Religião tornou-se algo bélico, demonstrativo de poder e opressão de modo muito mais poderoso do que no passado primitivo do homem primitivo que não separava sujeito de objeto. E olhando o vasto campo da destruição e violência que tem por detrás das religiões ficamos pensando se realmente elas defendem algo divino.

Conclusão

Compreender e realizar os elevado conceito de maya ainda é um desafio. Alguns preferem achar que maya é algo como um truque de mágica, assim como alguém retira um coelho de dentro de uma cartola. Mas maya é um conceito muito interessante e profundo, que envolve aspectos filosóficos igualmente profundos, além de pontos da Psicologia, Antropologia e Biologia. Considera-se básico seguir as orientações de Bhagavan, ou Sri Krsna, o qual nos deu todos os caminhos e meios para superar-se maya, ou egoísmo do “eu” e “meu”. Os versos claros, precisos e diretos do Bhagavad-gita nos dão todas as maneiras de superarmos maya. E a primeira e mais importante instrução dada por Krsna está resumida no verso 18.66 daquela obra, a saber “Poe de lado todas as religiões, e simplesmente renda-Se a Mim; Eu irei te proteger de todas as reações, não temas”. Evidente que o Ser é, e d Ele nada há a temer. Mas por que se insiste em aceitar uma orientação tão simples e direta? É que ainda o principio primitivo de maya não permite que se vá mais além do “eu” e “meu”.

Hari hara om tat Sat.

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