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sexta-feira, 13 de agosto de 2010

O Lila de Murari Gupta e Nimai

O passatempo de Murari Pandita e Nimai Pandita

Adaptado de Sri Caitanya-maṅgala, Srila Lochan Das Thakur
Adi-khanda, Balya-lila, textos 373-403

Tradução, comentários e notas de

SWAMI KRSNAPRIYANANDA SARASWATI



Sumário

1. Comentário introdutório,
2. O Lila
3. Apêndice: Sri Caitanya Caritamṛta Adi 10.49

1. Comentário introdutório

O leitor Ocidental tem muito pouco conhecimento sobre os Lilas ou passatempos transcendentais do Senhor Hari – o Brahman encarnado; Sri Krsna – em Suas inumeráveis formas e em Seus inumeráveis nomes. Muitas histórias narradas pelos sábios ou Munis da Índia podem causar espanto para quem não está acostumado com um tipo ou outro de comportamento, e julga de forma objetiva ou material os acontecimentos de ordem transcendental. O passatempo que envolve Murari Gupta, o principal médico devoto da classe vaidya na ocasião da vinda de Mahaprabhu, séc. XIV e Nimai - o nome carinhoso de Visvambhara - tem um profundo significado, envolvendo uma série de assuntos prévios na ciên-cia do Bhakti-yoga (conforme nos é ensinado no Bhagavad-gita), que o leitor deve procurar conhe-cer. Os sábios narradores dos Sastras, bem como dos Lilas do Senhor, em Seus inumeráveis nomes e formas, sempre nos alertam que há duas formas simultâneas de interpretação dos passatempos, uma é a literal e exotérica, e outra interna e esotérica. Não se trata de um simples jogo de palavras, mas é importante compreender que a orientação segura do Guru, que nada mais é do que um intérprete fidedigno que vivenciou e realizou de modo prático e direto os Ensinamentos das Escrituras, é de suma importância. Uma palavra solta sem compreender o seu contexto e fundo de significado é tão vazia como se nem mesmo existisse. Este presente texto é rico em conteúdo tanto exotérico como esotérico. Sobre o primeiro aspecto não há grandes necessidades de quaisquer comentários. Nossa abordagem na presente introdução tem em vista enfocar alguma coisa de sentido esotérico do texto.

Se observarmos bem, ao longo de nossas vidas vamos acumulando um amontoado de vícios, tam-bém chamados de “manias”. Estes vícios nascem da própria experiência, e da forma como cada um en-controu algum meio para manter-se no seu próprio ego. A ciência da Psicologia se dedica a estudar isso muito dedicadamente, mas nosso objetivo aqui é apenas mostrar que no campo da filosofia do Sana-tana-dharma há uma vastidão de abhyasas ou meios os quais têm em vista aproximar o pretendente da Verdade Suprema. Mas tão logo a Verdade seja deslumbrada, estes meios ou ferramentas devem ser deixados de lado. O importante é o conteúdo e não a forma. Aqui é possível fazer uma comparação singela. Por exemplo, alguém constrói alguma obra, monta um andaime no qual instala uma série de recursos, os quais são desmanchados depois da obra terminada. Assim é também com as técnicas ou ferramentas no caminho do transcendentalista que estão disponíveis aos milhares, conforme o rasa ou sentimento de cada um. Mas uma vez que o pro-pósito de algo é alcançado, não há mais porque manter o que nos fez chegar até o mesmo, mas a manutenção disso é chamada de vício ou mania. É tolo querer levar sempre junto ou deixar onde está o andaime depois de uma obra terminada. Também, mesmo no dia-a-dia dos afazeres, muitos se prendem às suas adversidades como se essas fossem privações e sofrimento, não compreendendo que os tropeços e outros imbróglios da vida nada mais são do que “brincadeiras” do Senhor para que encontremos o verdadeiro caminho para alcançá-Lo em Seu amor transcendental. É igualmente tola a identificação objetiva do tipo: “meu” corpo, raça, credo, religião, família, país, etc., porque são aspectos totalmente efêmeros comparados imensidão da Verdade pura do Brahman Supremo. Sri Krsna tem este comportamento que nos parece “debochado”, porque Ele quer nos mostrar a tolice dos nossos apegos objetivos, ou seja, como somos tolos crendo ser o corpo e suas relações. Nós podemos conhecer o grau de identificação objetiva de alguém pelo número de vezes que este diz “meu isso”, “meu aquilo”. Quanto menos inteligente alguém no caminho da devoção, maior será o número de “eus” e “meus” na sua ilustração ignorante.

Sri Murari Gupta era um grande erudito e devoto do Senhor. Ele foi um grande estudioso da ciência do yoga-sastra ou Escrituras sobre Yoga. Evidentemente, como médico, ele tinha na ciência do Yoga uma finalidade terapêutica também. De fato, mesmo nos dias de hoje, muitos se aproximam do que chamam “yoga” procurando algum tipo de conforto corporal. Contudo, o Yoga com suas técnicas e ensinamentos alcança tão somente um nível ou patamar de conhecimento transcendental. Por outro lado, a metafísica do yoga é fixista e dualista, e chega num ponto que o progresso nas técnicas físicas de Asanas ou exercícios de pranayama, etc., não podem mais avançar. Além de tudo, nosso corpo envelhece e irremediavelmente morre numa média de 100 anos. Há outros tantos que buscam no Yoga místico algum tipo de “poder” ou siddhi. Tendo em vista alcançar algo do tipo, alguém pode passar anos e anos de privações e austeridades, para poder ter algum vislumbre de algo fora do comum. Conta-se que havia um Guru que dera iniciação para um de-terminado discípulo. Este havia se aproximado do guru tendo em vista alcançar uma bênção. Depois de receber a iniciação do guru, voltou para sua casa do outro lado do rio, e dedicou-se muitos anos ten-do em vista poder caminhar sobre as águas. Quando um dia ficou sabendo da morte eminente do guru, este finalmente conseguiu caminhar por sobre as águas. Chegando ao leito de morte do guru, este perguntou-lhe “- por que não veio me ver antes?”, foi quando o discípulo disse, “- estava treinando para vir sobre as águas...”, no que retorquiu-lhe o mestre, “- mas não tinha umas 2 rúpias para pagar um barqueiro?”. Tal a irrelevância do fato pretendido e alcançado pelo “discípulo”.

É somente o amor pelo Supremo que nos leva até o Supremo de modo definitivo e direto. Piruetas, fantasias, malabarismos corporais e técnicas sofisticadas nada mais são do que elaborados meios de desfrute. Por mais que alguém prolongue seu corpo neste mundo, ele irá decair e finalmente terá quer ser abandonado. Se alguém ficar o tempo todo procurando apenas prolongar este corpo, irá perder tempo precioso em alcançar a compreensão maior que é a de desenvolver amor pelo Senhor Supremo. O objetivo mais elevado da vida é o de alcançar a paz do amor de Deus. Por que isso é tão difícil de ser compreendido?

A compreensão da realização no amor do Su-premo é importante, mesmo para aqueles que buscam algum tipo de alívio de sofrimentos materiais quaisquer, fazendo parte de alguma religião objetiva. O fato de alguém se aproximar de uma religião num estado de aflição, pedindo por benesses materiais, saúde do corpo, tanto seu como de outros, ou bens materiais é uma atitude inferior de amor por Deus. Este tipo de devoção imperfeita é conhecida do Senhor. Mas isso é como alguém ir ver o seu pai e mãe apenas para pedir-lhes algum tipo de ajuda financeira, ou material. Porém é a atitude de servir ao Senhor e a Sua causa desmotivada que conduz à liberação. Deus não é nosso servo, mas nosso Senhor. Esta atitude de servir a Deus é alcançada através da renúncia de qualquer coisa material egoísta, ainda que seja um sofisticado emaranhado de conhecimentos objetivos materiais, principalmente se todo o acumular deste conhecimento não tem aplicação prática no serviço devocional abnegado ao Supremo. Também, nós não negamos o conheci-mento secular, ele é parte da humanidade e do desenvolvimento humano, porém o Conhecimento Transcendental está mais além da imediatidade objetiva material daquele. É bem comum nos dias atuais vermos pessoas enchendo muitos “discos rígidos” de textos em seus computadores, sem sequer os compreender ou realizar o significado deles. Por sua vez, somente ter armazenado alguma coisa não traz sabedoria, se assim fosse, um bibliotecário seria um iluminado somente por trabalhar na biblioteca, e qualquer pequeno computador seria um verdadeiro gênio. Alguns textos são joias preciosas e peças fundamentais no caminho de realização do amor divino. Mas por não terem o coração aberto para servir, e porque buscam tão somente serem servidos, muitos se enrolam na tola e vã lastimável perda de precioso tempo em acumular fama, prestígio e poder. O coração de alguém que busca tolamente ter algum tipo de “lucro” no caminho do Yoga é apenas um “HD” de dados sobre Deus, mas completamente desprovido de amor e realização. Mas por maior que seja o acúmulo de alguém, em qualquer que seja a coisa motivada material ou objetivamente, esse será devorado pela inevitabilidade corrosiva do tempo da morte do corpo, bem como pelo desaparecimento de qualquer que seja a coisa material, por mais suntuosa que possa nos parecer num primeiro momento. Neste mundo nada é para sempre. Pouca coisa ou mesmo nada irá sobrar daquele que nada fez a não ser acumular riquezas materiais pessoais, ou conhecimento intelectual pessoal. Do mesmo modo como remédios prescritos por um médico não fazem qualquer efeito dentro das suas caixas (devem ser tomados conforme indicação), assim é também com todas as técnicas e métodos que andam circulando nas mentes curiosas e egoístas da kali-yuga. Muitos se comparam àquela tola senhora que atraída por uma gaiola dourada limpava-a todos os dias; porém num certo dia notou que por mais que limpasse a gaiola ela exalava mau cheiro. Foi então que percebeu que dentro da gaiola havia um pássaro morto. Por todo o tempo esqueceu-se de alimentar o animalzinho, ocupado-se com o exterior da gaiola. Lastimável! Assim agem os tolos que buscam apenas ilustrar, enaltecer, conservar ou preservar este corpo material, esquecendo-se de nutrir a Verdade que somos, ou seja desenvolver a consciência do Supremo, do Atma, ou espírito puro.

Nimai neste Lila nos dá uma grande lição ao dá-la, por Sua vez, para o sábio Murari. O sábio médico estava muito convencido das suas técnicas de yoga e cuidados para com o corpo. Hoje isso parece ter virado mania entre as pessoas do Ocidente. Ele estava agindo tal qual aquela senhora que não cuidou do pássaro dentro da gaiola. Contudo, apesar de todas as provocações de Nimai, feitas ao sábio Murari, este se manteve muito compassivo, e sempre via o Senhor em tudo, de modo que percebeu imediatamente a profundidade da lição que estava aprendendo. Tomara possamos aprender com as lições da vida a firmar o passo no caminho de amor a Deus ou Bhakti-yoga! Todo o sucesso material ou corporal, como no caso daquele que é obtido num corpo firme e forte, é temporário e transitório, ainda que seja meritoso se comparado a um relaxamento total de cuidados com o corpo e suas relações. O Lila de Nimai e Murari é uma grande lição de humildade e sabedoria para todos. A partir deste passatempo do Senhor com Murari, o médico de Navadwipa tornou-se um grande bhakta e servo íntimo de Sri Goura Hari. Que isso possa influenciar nosso coração e nos aproximar do Senhor, oferecendo-Lhe nosso serviço abnegadamente.

Oṁ tat sat

2. O Lila


Nimai urina na comida de Murari Gupta

Certo dia, o sábio literato e médico, Murari Gup-ta, chegou a Navadwipa, acompanhado pelos seus seguidores. Enquanto caminhava na rua, eles iam discutindo sobre os yoga-sastras. O jovem menino Nimai, caminhando imediatamente atrás de Murari Gupta, começou a imitá-lo no modo de falar. Murari percebeu pelos cantos dos olhos, mas continuou falando para seus seguidores.

Nimai e seus amigos, então, aumentaram suas zombarias imitando exatamente tanto o estilo de caminhar como o de gesticular de Murari. Finalmente, Murari ficou irritado, e repreendeu Nimai, “Quem diz que este menino é bem-educado? eu o conheço. Ele é o filho de Jagannatha Misra. Em todos os lugares eu tenho escutado suas glórias. Seu nome é Nimai”. Ouvindo estas palavras, como consequência, apesar das bondosas palavras de Murari Gupta, o Senhor Gaurahari ficou irado. Cerrando as sobrancelhas, o eloquente jovem menino disse, “Quando você for comer eu irei lhe ensinar algo”. Confuso por esta fala indireta, Murari retornou para sua residência. Ele ficou absorvido nas suas atividades domésticas, e se esqueceu do ocorrido. À tardinha, ele calmamente sentou-se para comer o seu jantar.

Neste meio tempo, Visvambhara Hari vestiu-se com roupas opulentas, colocou um cinturão ao re-dor de sua cintura, amarrou seu cabelo num nó trilo no topo da cabeça, colocou um mala de Tulasi e um grande colar de pérolas ao redor do pescoço. Ele marcou seus olhos com kajalla preta, e decorou seu corpo com brilhantes ornamentos dourados. Então, carregando ladus feitos de leite condensado em sua mão, Visvambhara entrou na casa do rei dos médicos, com voz atroadora, chamando: “Murari!”. Ouvindo este chamado, Murari lembrou-se do que Nimai havia lhe dito anteriormente. Sentindo-se um pouco surpreso, Murari disse: “O que você está fazendo aqui?” Nimai respondeu, “Ó, não se levante. Sou apenas eu. Trazendo sua refeição”.

Como Murari Gupta ficou absorto em comer, Nimai moveu-se para perto. Então, silenciosamente, ele começou a urinar no prato de Murari. “Ah! Ah! O que você está fazendo? Que vergonha; uma vergonha!”. Assim gritando, Murari pulou fora. Gaura Ray começou a bater palmas e dançar. Ele alegremente disse para Murari: “Abandonando o caminho de Bhakti você adotou o caminho do Yoga, e movimenta-se fazendo gestos engraçados. Abandone Karma e Jñana, e apenas adore Krsna com todo o seu coração! Torne-se um rasika-bhakta, experiente em saborear a bem-aventurança transcendental. Aquele que está apegado as coisas materiais não pode fazer krsna-bhajana, e sua consciência permanece inferior e impura”. E continuou, “O Senhor Hari é suprema-mente misericordioso. Não apenas possui todos os poderes, mas Ele é o pai de todas as almas, e d’Ele, o Brahman eterno é manifestado. Ele é o tesouro, a completa vida das gopis de Vrdavana. Por que você não dedica a sua vida para adorá-lo?” depois de ter dito isso, a joia dourada, Gourahari, desapareceu silenciosamente. Murari Gupta não pode encontrá-lo em lugar nenhum.

Repetidamente em seu coração, Murari pensava, “O filho de Sacidevi é o Senhor Supremo em Si mesmo!”. Pensando desta forma, Murari Gupta deixou apressadamente a sua casa. Devido a estar inundado com alegria, ele não pode caminhar apropriadamente. De alguma forma, ele chegou a casa de Jagannatha Misra. Lá ele encontrou Jagannatha Misra e Sacidevi beijando, acariciando e falando afetuosamente com o filho deles, Nimai. Eles diziam, “Você é o nectário tesouro de nossas vidas. Seja qual for a experiência de sofrimento que tenhamos, nós esquecemos todas elas tão logo contemplamos o brilho do seu rosto”.

Murari Gupta ficou dominado pela bem-aventurança. Apesar de Jagannatha e Sacidevi da-rem as boas vindas para ele, Murari não disse ne-nhuma palavra. Ele apenas observava a bela face de Gauracandra. Seus pelos, da cabeça aos pés, ficaram arrepiados. Correntes de lágrimas jorraram de seus olhos, banhando seu corpo. Sua voz falseou, e seus olhos avermelharam-se como o sol da aurora. Ele sentiu-se como uma estaca diante dos pés de Gauraṅga, curvando-se repetidamente diante d’Ele. Agindo como se não entendesse o que Murari estava fazendo, Visvambhara agarrou-se a cintura de sua mãe. Sacimata então falou para o senhor respeitável Murari Gupta: “Murari, por favor abençoe nosso filho. Ele fez algo que ofendeu o senhor? Todos sabem que o senhor é o melhor dos médicos. Por favor, nos diga que ofensa nosso filho cometeu. Deixe qualquer sofrimento vir até nós, mas nos dê a bênção para que nosso filho viva para sempre”. Falando estas palavras, Sacidevi e Jagannatha humildemente seguram as mãos de Murari e curvaram-se diante dele. Sorrindo, Murari disse, “Seu filho Visvambhara é o mestre dos mestres de todos os semideuses. No futuro, o menino que vocês estão educando, irá revelar a sua verdadeira identidade para vocês. Vocês são os mais afortunados pais do mundo. Tomem cuidado dele e proteja-o. Lembrem-se de minhas palavras, seu Visvambhara é realmente o Senhor Supremo”. Depois de dizer isso, Murari rapidamente deixou a casa de Jagannatha Misra.

Com seu coração palpitando de bem-aventurança, Murari foi visitar Advaita Acarya, o mestre universal e reservatório de Bhakti. Caindo aos Seus pés, Murari disse: “Você é um grande de-voto. Você é uma árvore de desejos que pode satis-fazer todos os desejos. Eu apenas vi o mais maravi-lhoso menino na casa de Jagannatha Misra. Seu nome é Nimai Pandita Visvambhara. Ele é totalmen-te transcendental à este mundo material. E mesmo assim, Ele brinca alegremente com Seus amigos tal qual um menino comum”.

Tendo escutado isso, Advaita Acarya, a joia entre os Brahmanas, deu um rugido, enquanto cada um dos pelos dos seus braços e corpo se arrepiavam. Advaita disse, “Murari, escute! Isso é um grande segredo. Nimai Pandita é o Senhor Supremo, o reservatório de todos os rasas e a incorporação da beleza transcendental”. Então Advaita Acarya e Murari Gupta abraçaram-se alegremente e se esqueceram de qualquer coisa.



NOTAS
1. Um tipo de maquiagem para os olhos
2. Sri Advaita Acarya é considerado uma encarnação con-junta de Maha Visnu e Sadasiva (o Senhor Siva ou Ma-hesvara).

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