Sanatana Dharma e Alimentação
Em perguntas e respostas
Swami Krsnapriyananda Saraswati
prof. Olavo DeSimon
prof. Olavo DeSimon
GITA ASHRAMA
Porto Alegre, RS - Brasil
2006-2011
Sri Dhanvantari |
Na realidade, não há nenhuma restrição à dietas no “Hinduísmo” – Sanatana-dharma. Mas o que deve ficar bem claro é que não há distinção entre o alimento e a religiosidade dos “hindus”. Na realidade, tudo é considerado sagrado pelo Sanatana-Dharma, porque tudo é uma criação divina, mas desde que não seja ofensivo às leis védicas. Por outro lado, o grande número de pessoas existentes na Índia, nos dias atuais são cerca de 1.bi (um bilhão) pessoas - a grande maioria “hindus” ou membro do Sanatana-dharma permitem-se a uma grande diversidade de alimentação. Por exemplo, as populações ribeirinhas e costeiras, e as pessoas do interior da Índia possuem alimentações diferentes. Bem como as que estão no Norte, no Sul, no Leste ou no Oeste. Apesar de o arroz ser a cultura principal da Índia, há o uso de muitos alimentos como raízes, frutas, legumes, peixes, e carnes (com exceção da de gado bovino e ou búfalos), etc. A grande maioria do povo é vegetariana, mas nem todos praticam este tipo de dieta, uma vez que o princípio fundamental da filosofia védica diz que tudo deve ser realizado conforme tempo, lugar e circunstâncias, e com Ahimsa, não-agressão.
Kamadhenu |
A parte central da Índia, até então um deserto inabitável foi totalmente reestruturada tendo em vista o cultivo do arroz, através da constante colocação de esterco de vaca, e da construção de cisternas, para acumular água da chuva. Depois de um longo trabalho, o deserto virou uma terra cultivável. Isso é a mais notável ecologia aplicada através de uma cultura milenar que se tem notícia.
Por sua vez, as atuais "fábricas de carne" do Ocidente, só fazem aumentar ainda mais a dor, a miséria e a fome no mundo. O grau de poluição que produzem estas "indústrias da matança" é tão elevado que não se sabe o que fazer com os seus subprodutos.
Sobre as combinações alimentares – o Ayurveda
A ciência que estuda o completo equilíbrio alimentar no Sanatana-dharma chama-se de Ayurveda, ou ciência da vida longa e saudável. A tradição sustenta que Sri Dhanvantari, uma encarnação de Vishnu, foi quem ensinara esta ciência diretamente aos Rishis. O Ayurveda é uma ciência médica muito antiga, e onde podemos encontrar o que há de mais complexo e perfeito sistema de alimentação. No Ayurveda, as pessoas aprendem a se alimentar de acordo com a sua constituição própria, chamada de Dosha; e o nome destes Doshas são: Vata, ou princípio aéreo; Pitta ou princípio ígneo, e Kapha, ou princípio aquoso, fatores que resultam da combinação dos cinco elementos e a natureza particular constitucional de cada um num determinado momento da vida.
Cada um de nós, segundo esta ciência védica da saúde, possui uma predominância e uma combinação de Vata, Pitta e Kapha. O completo estudo sobre esta ciência e as combinações destes Doshas é realizado em faculdades devidamente autorizadas, estando muito longe da especulação alopática tradicional da mente Ocidental.
A arte da saúde védica do Ayurveda é aprendida através de um estudo sistemático e prático junto ao mestre espiritual ou Guru Siksha, da medicina védica, num curso que leva oito anos. Pelo menos até onde conhecemos, no Brasil inexiste escola superior de Ayurveda nos moldes clássicos da Índia, reconhecida pelo Ministério da Educação. E as tais 'massagens' "ayurvédicas", que vemos pipocando por todos os lados, não pertencem à ciência do Ayurveda clássico dos Sastras.
Resumidamente, o Ayurveda diz que os alimentos Kapha são geralmente pesados, gordurosos, e causam acúmulo de líquidos. Os alimentos Pitta são picantes, quentes e ardentes, têm a coloração avermelhada, e podem auxiliar na digestão. Os alimentos Vata são os alimentos frescos, de sabor adstringente, bem como a maioria das drogas e remédios possuem esta natureza. No Bhagavad-gita, cap. 17, são citadas as características de cada alimento conforme a natureza ou inclinação de Rasa ou “humor” da pessoa.
3- Há algum tipo de tabu na alimentação do Sanatana -Dharma?
Sabemos que esta palavra na cultura do estudo sistemático da alimentação ocidental, chamado de "nutricionismo", possui uma conotação com "hábitos adquiridos na simples apreensão", e que, portanto, não possuem nenhum elemento científico, etc. Contudo, entendemos que não há preconceitos ou tabus dentro do Sanatana-dharma, mas todo um processo que tem dentro de si um complexo conteúdo teórico e prático, mas que não aparece para nós na primeira impressão ou vista, a não ser que se conheça a cultura a fundo.
Regra da mão-esquerda
Como em todas as culturas, na Índia existem muitos conceitos que estão profundamente enraizados nas pessoas. Por exemplo, segue uma convicção de que uma pessoa não deverá comer com a mão esquerda, a não ser que haja algum problema que a impeça. A razão está fundamentada em que a mão esquerda é utilizada para as atividades de limpeza e higiene, como banho, etc., e a mão direita é usada para coisas mais nobres, como comer (uma vez que se come com a mão em muitos lugares na Índia), e se a usa para pegar as coisas da deidade, as oferendas, etc. Bem como, é considerado ofensivo comer na frente de uma pessoa importante usando a mão esquerda, ou pegar alguma coisa que ela oferece usando a mão esquerda, assim por diante.
Estes conceitos e hábitos são compreensíveis, uma vez que há milênios têm evitado epidemias e contaminações provocadas pelas próprias fezes, por exemplo. Na Índia não há o hábito de usar papel higiênico, porque é considerado contaminante, e porque apenas “espalha” a sujeira. Por esse motivo, as pessoas banham-se sempre após urinarem ou evacuarem. É comum vermos os indianos banharem-se nas portas de suas casas, onde há bacias, antes de entrar em suas casas. Quando isso não é possível, utiliza-se um jarro com água para a limpeza íntima. As pessoas tomam cerca de quatro banhos por dia na Índia. De fato, o uso de papel higiênico não é higiênico, porque apenas espalha a sujeira e não a limpa de forma eficiente, além de causar danos aos tecidos sensíveis do corpo. Para evitar que a mão que se usa para limpar o corpo contamine-o, há o hábito de usar a mão direita para a alimentação e a esquerda para a limpeza, etc. O simples fato de utilizarem a mão esquerda para limpeza, e a direita para afazeres diferentes, demonstrou-se muito efetivo, por exemplo, na qualidade da água benta da catedral de Goa, onde, ao contrário das igrejas do Ocidente, não foram encontrados coloides fecais e outros agentes contaminantes.
Por sua vez, a pessoa que está servindo o alimento não pode comê-lo, e poderá fazer isso somente após ter servido a todos. Caso venha tocar os alimentos com a boca, deverá lavá-la, bem como às mãos. A razão disto é que nem sempre são utilizados talheres para isso, sendo feito diretamente com a mão limpa. Os alimentos são sempre servidos com a mão direita. A pessoa deverá ter a unhas bem aparadas, limpas e sem pinturas.
Karma
Há, também, o conceito de alimentos cozidos por pessoas karmis, ou de articuladores de atividades fruitivas (trabalhadores comuns), e de alimentos cozidos e preparados por devotos. Segundo os Vedas, nos alimentos ficam as impressões mentais das pessoas, e o Karma da pessoa que cozinha passa através do processo de cozer e preparar os alimentos. De fato, se observarmos com muita atenção, veremos que suor, pele, e muco, às vezes cabelos, etc., ficam nos alimentos preparados pelas pessoas, mesmo que usem de grande cuidado. A não ser que se use máscaras, luvas, etc., não haverá como não passar partes do próprio corpo da pessoa, na ocasião da preparação, para o alimento que está sendo preparado. A pessoa que cozinha deverá ser uma pessoa muito cuidadosa com a limpeza, tanto pessoal como do ambiente em que está trabalhando, e estar perfeitamente bem de saúde.
Segundo o Ayurveda, uma pessoa não deverá provar o alimento enquanto o estiver cozinhando, salvo o tempero de sal ou condimentos, colocando em sua própria mão. A razão é que os alimentos estão sendo preparados para o Supremo, e não para si próprio. Além do mais, isso contaminaria o alimento com a sua saliva. Mesmo porque, o fato de ficar provando o alimento, levando-o a boca, e depois mexer e reintroduzir instrumentos que tocaram na boca, no alimento novamente, o contamina. Desta forma, a maior parte da culinária da Índia não é experimentada durante o processo de cozimento. Isso tem evitado, através dos séculos, a disseminação de doenças de um indivíduo para outro. Mesmo as grandes epidemias que assolam o mundo são tímidas diante do povo da Índia, em virtude destes cuidados simples e objetivos com relação à saúde.
Alimento é Prasada
No Sanatana-Dharma, há uma intima relação entre o alimento e o Ser Supremo, de modo que as pessoas são muito reverentes a eles. Sempre a alimentação está associada à espiritualidade. Todos oferecem os alimentos à deidade antes de os comerem. Não se trata de simplesmente agradecer pela comida, mas oferecer para que seja purificado, e transformado num resto do Senhor ou Prashada. Um devoto do Senhor somente come Prashada, porque oferece tudo para Ele. Os Upanishads (escrituras sagradas) dizem que o alimento é Brahman, ou seja, que o alimento é o Ser Supremo em Si mesmo.
Também, há o costume de que uma pessoa chefe de família só pode comer depois que ofereceu os alimentos para todos os que estão ao redor da sua casa. Nem mesmo os ratos devem ficar sem alimento, porque esta é a obrigação do chefe-de-família, ou seja, de alimentar todos que estão na sua vizinhança. Sempre os homens mais velhos devem receber a refeição pro primeiro, sendo que os últimos a se servirem são os jovens e as mulheres. Esta é a tradição. Uma casa não deve deixar de oferecer alimento para um monge que o pede, sob pena de ficar sob pesada carga de um Karma ruim. Os monges itinerantes na índia, chamados de Brahmanas, alimentam-se pelas esmolas adquiridas nos locais. Desta forma, nunca há fome na Índia, apesar das pessoas no Ocidente dizerem que na Índia se passa fome. Os templos se encarregam de alimentar o restante da população. Em alguns templos da Índia servem-se cerca de 6.000 pratos todos os dias, de forma absolutamente gratuita para a população mais carente.
É dito que negar um alimento para um Brahmana traz infortúnio e miséria. Também é dito que é auspicioso comer os restos que uma pessoa importante deixou da refeição. Como um Swami realizado é considerado o próprio representante do Senhor na Terra, os alimentos que sobraram no Seu prato são servidos como Prashada, de modo que há idéia soterológica no consumo de um alimento tocado por uma pessoa pura. Do mesmo modo, alimentos tocados por pessoas não adeptas, ou doentes, bem como os que foram cozidos e preparados por eles, são considerados impuros e contaminados.
Isto é o básico sobre este aspecto alimentar na Índia Hindu.
4- Os Hindus fazem oferendas com alimentos? Quais?, e a quem?
Não é possível nenhuma atividade no templo, junto à deidade, etc., sem que haja alimentos. Como vimos, a relação com o alimento é algo muito sagrado e religioso. Na verdade, tudo gira em torno do alimento e na sua distribuição; o alimento é o próprio Brahman, ou o Ser Supremo, de modo que prepará-lo, oferecê-lo, etc., fazendo tudo para a Deidade, ou a forma representativa de Deus em Si mesmo, sendo o alimento considerado sagrado.
Há as mais variadas oferendas feitas com alimentos. Há, inclusive, algumas seitas que oferecem sangue e carne de animais que não seja vacuno. Mas não são muitos. No mais das vezes, oferecem-se alimentos vegetais, frutas, legumes, sendo que o coco tem um significado muito especial. Amêndoas, bananas, maçãs, e frutas do local são consideradas presente do Supremo, e são consumidas após ter-se oferecido a Deus.
Conforme a tradição clássica do Sanatana-dharma, há cinco tipos de oferendas diárias que um chefe de família deverá fazer. Estes sacrifícios são sempre feitos com alimentos, frutos, flores e água. Na realidade, não há nenhuma oferenda que seja feita sem conter água, flores, incenso, e fruta.
5- Como os Hindus tratam as doenças? Utilizam ervas? Quais?
Como vimos, a ciência védica da saúde é chama de Ayurveda, ou conhecimento sobre a vida. O uso de chás e remédios para todas as doenças conhecidas, desde a antiguidade, já está de algum modo referenciado no Atharva-veda, local de onde provém o Aryuveda. Ao longo dos séculos, a ciência foi crescendo com técnicas, como a do uso de estímulo em pontos no corpo, conhecidos como Marmas, o que deu origem, provavelmente, da moderna acupuntura, explorada pelos chineses posteriormente. Apesar das técnicas milenares de cura, os Hindus estão livres para consultar a medicina tradicional. E sendo possível, um Hindu sempre oferece os remédios para Deus antes de usá-los, porque compreende que tudo provém da vontade d´Ele, e por conseguinte, diz respeito a uma reação karmica. Isso quer dizer que há três tipos de karmas básicos, a saber: o que está acontecendo neste momento, o que irá acontecer no futuro, e o que está sendo acumulado para uma próxima vida. No entendimento dos Vedas todas as doenças são provenientes do karma e de suas reações. Somente as atividades que são feitas tendo em vista a satisfação de Deus não acumulam reações, nem boas nem más.
tomada de pulsos |
A farmacopeia védica é uma das mais extensas que se conhece. Os livros sobre isto são volumosos, e tratam de definir os usos e as formas de cultivar e usar ervas, minerais e outros produtos, que remontam cerca de 7.000 (sete) mil anos atrás. Na farmacopeia védica há uso de produtos diversos, sendo que minerais, vegetais, composições, fórmulas, beberagens, etc., junto com “encantamentos” feitos por um Kaviraja, são tradicionais. Kaviraja é a pessoa que se dedica a ensinar e tratar as pessoas doentes, sendo comuns na Índia, e fazem parte do cotidiano dos Hindus. Muitos deles são práticos e utilizam esse processo por tradição familiar, agindo de forma absolutamente empírica.
6. Como os Hindus mantêm a saúde do corpo? Realizam exercícios físicos?
O sistema védico da saúde inclui corpo e mente. Os exercícios mais antigos que mantêm o corpo em forma e auxiliam a controlar a mente são chamados de Âsanas, e que normalmente são conhecidos como “Yoga” no Ocidente. Estes exercícios ou Âsanas se constituem numa série de posicionamentos físicos que têm em vista o desenvolvimento do equilíbrio, correta respiração, manutenção da saúde circulatória, etc. tem do em vista habilitar o seu praticante a alcançar Brahma-vidya, o conhecimento sobre a Realidade Suprema ou Brahman. Diferentemente do culto ao corpo encontrado no Ocidente os 'hindus" seguem uma vida saudável, com pelo menos um banho por dia, uso de roupas leves, sem produtos contaminantes; tudo isso fazendo parte da correta forma de manter a saúde. Contudo, Yoga é mais do que um simples ficar de cabeça para baixo e exibicionismo circenses. Os Asanas têm por objetivo o fato de alguém alcançar uma consciência superior, além do corpo, da mente e dos sentidos, e é por isso que os Asanas são feitos; de outra forma, se o seu empreender tem em vista algo como emagrecer ou coisas do gênero, torna-se díspar com seu propósito. Para isso, há uma série de outras técnicas. Um verdadeiro Hindu tem em mente somente a realização do Ser Supremo; busca acima de tudo realizar a consciência Superior, ou Consciência Brahman ou Atma.
alusão a Sri Patanjali |
7. Os Hindus fazem refeições especiais em datas comemorativas, feriados ou fins de semana?
Dentro da prática do Sanatana-dharma existe todo um processo muito íntimo com a dieta e as datas comemorativas. Na realidade, há muitas datas consideradas sagradas e que são comemoradas. Cada Ashrama, ou local de peregrinação e instrução, possui suas atividades e festas sagradas. Em geral, costuma-se fazer 108 preparações especiais nestas datas, uma vez que 108 é considerado um número sagrado na Índia Hindu. Além das festividades sagradas, comemora-se o aparecimento do preceptor espiritual, Guru Purnima, geralmente seguindo o calendário lunar, por isso algumas festividades variam de ano para ano.
Em muitas regiões da Índia, duas vezes por mês é feito jejum de grãos, ou seja, não se consume arroz, milho ou trigo, ou qualquer tipo de grão. Este “jejum de grãos” não impede que a pessoa coma outros alimentos, podendo ser feito consumindo-se vegetais em geral, ou somente água, ou então sem água e sem qualquer tipo de alimentos. Esta técnica de jejum é muito saudável, além de dar uma grande economia para a manutenção de grãos no pais. Levando-se em conta que uma pessoa, em média, consome cerca de 100 g . de arroz por dia, multiplicando-se por 1.300.000 pessoas, têm-se uma economia de cerca de 300.000 toneladas de grãos por mês, ou 300.000.000 de kg., o que garante um bom balanço numa futura escassez.
hari om tat sat