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quarta-feira, 3 de maio de 2017

Um Momento de Gratidão - O Nascimento de Shanmukha

Um Momento de Gratidão - O Nascimento de Shanmukha

Swami Krsnapriyananda Saraswati - Olavo DeSimon

Mitologia indiana
Gita Ashrama - Outono, 2017


Murugan, com sua lança e transporte celeste (pavão real)

Preâmbulo
A mitologia indiana védica é riquíssima, e, provavelmente, suas narrativas influenciaram toda a Ásia, bem como o Ocidente, com a sua visão cosmogônica e teogônica. Contudo, os aspectos peculiares de cada lila (passatempo) que aparece nas narrativas da chamada “mitologia hindu” estão repletos de conteúdos morais, e como sabemos, são assuntos pertencentes aos mitos de todos os povos, além disso, os mitos indianos nos mostram a natureza divina e um princípio cósmico e universal permanente incoativo em tudo e em todos. Na mitologia indiana, é Impossível separarmos o cosmos, as estrelas, os planetas, os cometas, os meteoros, os nomes dos personagens e suas personalidades com eventos cósmicos e antropogênicos, e assim por diante. Notável é, também, a relação íntima entre o universo-macrocosmos com o universo-microcosmos, no que somos todos nós. A ideia de “teia” (Tantra), hoje difundida como “rede”, constitui-se a base fundamental do mito e do pensamento hindu. É por isso que a chamada “lei do karma” é tão surpreendentemente fecunda no campo tanto das coisas físicas como psíquicas. Mal interpretado no Ocidente, o princípio do karma defende que apenas objetivamente (na aparência temporária das coisas), é que temos nomes, formas, atribuições, e tudo aquilo que o mundo fenomênico nos mostra, mas, de fato, são modificações de uma mesma e singular substância primordial: o Absoluto.

Além dos aspectos mitológicos em si mesmos, presentes nas narrativas hindus, o leitor irá encontrar uma série de termos-palavras dos quais derivam muitos vocábulos usados no Português, e que também estão em outras línguas, as quais possuem “origem  hindu-europeia”, dando um nuance muito especial para o aspecto étimo-filológico - o sentido original de uma palavra - adicionando, assim, uma pitada da rica história da gênese e do sentido dos significados dos nomes contidos nas palavras. O primeiro exemplo é a própria palavra mito, a qual advém do Sânscrito, “medh” ou “midh”, tendo, entre outros, o significado de “entendimento”; “sabedoria”; “compreensão”, e, nos remete para narrativas de “formas e força extraordinárias”, as quais aparecem nas histórias através dos tempos. Gregos, Romanos, e outros povos do passado, herdaram, assim, a palavra, o termo e o significado original de mito. Conforme CIVITA (1973, p. 3), “Dentro da narrativa mítica esconde-se um aspecto, um núcleo, que encerra uma verdade... o mito relata uma ‘história verdadeira’, na medida em que toca profundamente o homem...”

Por outro lado, o leitor atento perceberá que há um conteúdo “esotérico” (interno; velado) e outro “exotérico” (externo, comum) nos mitos da Índia, e, quiçá, em toda a mitologia conhecida. É por isso que é sempre recomendado ler e reler as narrativas e estabelecer um elo entre a cosmogonia e a teogonia hindu. E a palavra-chave, aqui, é “despojamento”, desde que pelo viés particular o social que alguém está engajado, certamente, não será possível avançar-se na compreensão mitológica indiana. De algum modo muito peculiar, todos somos fruto das estrelas.

O que é notável nesta presente narrativa do aparecimento do chefe de todos os guerreiros celestes, Karthikeya, além de ser altamente imaginativa, é o modo como ele foi nutrido pelas estrelas, Krittikas, bem como esteve acolhido por Agni-deva, e, por fim, onde Śiva reconhece e agradece a cada um, dando epítomes como Shanmukha, Murugan, Skanda, Kumara, Vishakha, Subramaniyam, entre outros tantos, para o menino cuidado pelas estrelas. Pode ser que possamos implementar isso também em nossas vidas. Muitas vezes somos rápidos em esquecer daqueles que nos ajudaram ao longo da nossa existência terrena, mas olhando bem de perto, todos temos um pouco de um e arremedo de outro, tendo muitas faces, bocas e olhos, e pode ser que nem sequer nos demos conta disso.

O Nascimento de Shanmukha
O Senhor Shiva ficou imerso em profunda meditação, depois de perder sua esposa Sati[i]. Tirando proveito deste estado de Shiva, o demônio Tārakāsura ofereceu uma longa e dura penitência, de mil anos, ao Senhor Brahma, e, assim, obteve uma bênção: "Que minha morte venha apenas nas mãos de um menino que seja filho do Senhor Shiva".

As atrocidades de Tarakasura entre os deuses, sábios e devotos, se tornaram insuportáveis ​​depois disso. Os deuses perseguidos, se uniram e lançaram um grande plano. Eles incentivaram o casamento de  Shiva e Parvathi, ​​com a ajuda de Kama, o deus do amor.

No entanto, após o casamento, mesmo depois de várias centenas de anos, não havia nenhum sinal do casal sair de seu palácio em Kailasa. Os Deuses, agora desesperados, debateram seu próximo plano: "Se o Senhor Shiva e a Deusa Parvathi não tiverem um Filho em breve, então vamos perder o paraíso para este demônio Taraka. Vamos conversar com eles”.

Nandi, o assistente de Shiva, guardava a porta do palácio em Kailasa. Ele recusou a entrada para os visitantes. Então, eles planejaram, mais uva vez: "Vamos cantar alto, louvores a Shiva,  daqui. Ele, certamente, vai sair para nos receber. Ele é um Deus bondoso”. Como esperavam, Shiva, depois de ouvir as preces dos deuses e sábios, saiu e foi tomado de surpresa: "O que traz todos vocês para minha morada?", Perguntou Shiva.

Na reunião, agora animada momentaneamente, explicou-se a Shiva como estavam ansiosamente, esperando seu filho nascer. Shiva pensou por um momento e então disse: "Vou liberar essa energia do meu corpo agora. Vocês cuidam disso, e um menino nascerá dela."

A felicidade dos Deuses não conhecia limites. Mas quando eles perceberam que a energia emitida por Shiva era insuportavelmente quente, eles empurraram o deus do fogo, Agni, para a frente, dizendo: "Pegue a energia, Agni!" E ele o fez. Depois de um tempo, o próprio deus do fogo estava em chamas! "Eu tenho que tirar isso de mim. Este calor é mais quente do que qualquer coisa que eu senti até agora.” Assim, Agni transferiu a energia para os corpos de seis Krittikas (exceto Arundhati), as esposas de Saptarshis (sete sábios).

Krittikas (Plêiades ou M45)
As delicadas Krittikas começaram a queimar com o calor da luz branca que tinham recebido com entusiasmo de Agni. Elas rapidamente lançaram-na no Himalaya. Quando a neve começou a derreter, Himavantha fez flutuar a energia até o rio Ganga (Ganges). A deusa do rio, secando-se do calor, depositou suavemente a energia na grama exuberante de Shara, em sua margem de rio.

E, no minuto em que a energia tocou a grama, uma criança, que emanava uma luz brilhante ao redor dela, se formou. Quando os gritos do bebê chegaram às Krittikas, elas vieram correndo para alimentá-lo. Então elas iniciaram uma disputa: "Ele é meu bebê", disse uma. "Como assim? Eu o dei de mim também ", disse a seguinte. O bebê, então, magicamente, fez crescer seis cabeças para apaziguar cada uma de suas seis mães adotivas! O pequeno adorável cresceu logo, para ser um menino valente sob o amoroso cuidado das Krittikas.

Shiva e Parvati, com Karthikeya e Ganesha
Enquanto isso, o Senhor Shiva e Parvathi estavam em busca frenética de seu filho. Os homens de Shiva, Ganas, finalmente localizaram o garoto que brilhava com uma refulgência igual ao do Sol.
"Nós estaremos eternamente gratos a você por ter criado nosso precioso filho", Shiva e Parvathi agradeceram a Krittikas, que, embora muito tristes, enviaram seu filho para seus legítimos pais.

Shiva e Parvathi então declararam: "Este nosso filho foi criado por muitas pessoas de bom coração. Queremos agradecer a todos eles. Ele será chamado Kartikeya por ser nutrido por Krittikas. Ele também será chamado Agney por ter sido levado por Agni; Gangeya por estar no ventre de Ganga, e Saravana, por ser protegido pela grama Sara.

O jovem Kartikeya, foi, então, nomeado por Śiva como comandante-em-chefe do exército dos deuses, e assim lutou e matou o poderoso demônio Tarakasura, restaurando a paz em todo o universo.


Glossário Sânscrito
Himalaya: lit. sânsc.: “morada da neve eterna”; cadeia de montanhas do norte da Índia.
Himavantha: lendária floresta que rodeia a base do Monte Meru (monte místico, considerado centro do mundo), onde a cadeia do Himalaya é considerada a localização física atual. O seu nome está, também, associado a criaturas míticas como Naga (povo serpente), Kinnara (criaturas metade homem/cavalo/pássaro, sendo a provável origem da palavra “quimera”) e Garuda (o condutor de Vishnu). Na mitologia budista, a árvore Nariphon, florescia naquela região.
Nariphon: “pronuncia-se: “naripon” sânsc: nari=“nascida”; “phalak”= fruto;  também conhecida como “makkaliphona”; árvore na qual crescem frutos com formatos femininos, estando atados por suas cabeças (como maçãs). Na mitologia indiana, os Gandharvas (músicos guerreiros celestes), desfrutavam destas frutas com esse formato peculiar. Essa mitologia se espalhou para a Tailândia e entre os budistas.
Kṛttikās: também conhecidas como “kārtikās”, correspondendo as estrelas Plêiades, são chamadas de “esposas” dos sete sábios.
Saptarishis: lit. sânsc. “sete sábios”; estes sábios tem diferentes nomes em cada Manvantara ou era cósmica, segundo a mitologia do ciclo de criação  e destruição do universo ou ciclo de Brahma ou Manuvantara. Na atual era, os sete sábios são: Kashyapa, Atri, Vashista, Vishvamitra, Gautama Maharishi, Jamadagni e Bharadvaja. Também possuem correspondência com sete estrelas, as quais estão na constelação da Ursa Maior, então seus nomes são: Kratu, Pulaha, Pulastya, Atri, Angiras, Vashista, e Bhrigu. É dito que Vashista está acompanhado de sua esposa Arundhati (Alcor/80 da Ursa Majoris).
Shara: ou sânsc. śara, um tipo de gramínea medicinal, conforme a tradição do Ayurveda. É também referenciada como Inana ou Iśtar (da mitologia sumeriana). A expressão “savana”, bem como “caravana”, deriva-se deste tipo de grama.
Kailasa: conforme a mitologia hindu, trata-se da residência de Śiva, localizada no monte Kailāsaḥ ou Kailash (do sânsc. kelāsa= cristal), o pico da cadeia Kailash no Himalaya.
Shanmukha: do sânsc. “ṣaṇmukha”, tendo seis bocas ou faces.
Tārakāsura; do sânsc. “Meteoro”.

Referências bibliográficas
ZIMMER, Heirinch. Mitos e Símbolos na Arte e Civilização da Índia. 2ª impressão. São Paulo, Palas Athena, 1998.
___. Filosofias da Índia. 5ª reimpressão. São Paulo, Palas Athena, 2000.
CIVITA, Victor. Vol. 1, 1ª. Ed. Mitologia. São Paulo, Abril S.A, 1973.

Para saber mais
The Hindu Universe: Karthikeya-Subramaniya






[i] Satī é também conhecida como Dākṣāyaṇī (filha do rei Dākṣā), sendo considerada a deusa da felicidade matrimonial e da longevidade na mitologia hindu. Ela foi a primeira esposa de Śiva, o qual sempre vivia em isolamento asceta, na participação criativa do mundo. O ato conhecido como “satī”, na qual a viúva se autoimolava na pira de cremação do marido, como prova final de lealdade e devoção a ele, deve-se ao fato de que Dākṣāyaṇī ter feito isso em honra ao seu marido, quando seu pai desprezou Śiva deixando-O fora de um grande sacrifício e mantando matá-lO, o que é uma tarefa impossível. Após isso, Parvathi casou-se com Śiva, sendo, na verdade, uma reencarnação de Satī.