Pesquisar este blog

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Um pouco do básico da Filosofia Védica


Um pouco do básico da Filosofia Védica
dharmasiddhanta” –

Swami Krsnapriyananda Saraswati
prof. Olavo DeSimon

Gita Asrama
2012

Kamadhenu


O Sanatana Dharma ou (ordem eterna), conhecido no Ocidente como “hinduísmo”, possui princípios tenentes ou fundamentais os quais caracterizam o seu ethos, ou modo de ser e agir direcionado aos seus buscadores/seguidores. Uma compreensão ampla do Sanatana Dharma é tê-lo como uma “ciência do agir humano”, o qual é o mesmo em todos os lugares, tempos e circunstâncias, por isso o codinome “sanatana= eterno”. Por sua vez, a filosofia dos Vedas é ampla, e a compreensão dos seus fundamentos é também vasta e difícil. Há seis darshanas ou ‘visões’ mais importantes dentro do seguimento da Teoria do Conhecimento dos Vedas, sendo que o Vedanta é o mais complexo de todos. Não se desmerece nenhum dos darshans como Yoga, Vaiseshika, Nyaya, ou Sankhya, nem o Mimamsa, que é um proto-Vedanta. Porém o Vedanta contém todos os demais aspectos dos dharshanas anteriores, e compreende a essência dos Vedas nos chamados “upanisads”, que são posicionamentos filosóficos muito complexos e elucidativos da forma ontológica da filosofia dos Vedas.

A seguir veremos alguns dos aspectos constantes no Sanatana Dharma, tendo em vista elucidar o leitor desta profunda ciência do agir humano:

1. Purusharthas: buscas na vida
O sério esforço para realizar as metas da retidão é conhecido como o conceito de buscas da vida. As Escrituras prescrevem quatro propósitos ou buscas, a saber: 1) Dharma: reta conduta; 2) Artha: aquisição de “riqueza” através de meios honestos; 3) Kama: desfrute físico e felicidade mental, e 4) Moksha: liberação do oceano de nascimentos e mortes (samsara)

Os Purushartas, inicialmente, eram chamados trivarga, sendo considerados três buscas, e, no período chamado dos Upanishads, o quarto conceito ou Moksa passou então a ocupar lugar entre os aspectos importantes na busca da vida.

Kama ou “desejo”, como a aquisição temporária de um estado de felicidade ou de prazer, é o mais singelo de todos os outros propósitos da vida. O Manusmriti, um antigo Código indiano de leis, diz em 5.56, que a mera tendência da busca da simples satisfação dos sentidos, como saciar o apetite (gula), etc., e a busca de um objeto de prazer, está presente nos animais em geral. Se o homem considerado superior aos outros animais deverá tentar desapegar-se de tais desejos da simples apreensão e controlá-los. Não há como não ter os sentidos, salvo uma tragédia funcional, mas a inteligência e o autocontrole são aspectos possíveis para os seres humanos. O controle dos sentidos está na mente, e não nos objetos dos sentidos ou nos órgãos dos sentidos.

Nitishastra: Pelo ponto de vista ético – nitishastra – o conceito de buscas ou propósitos da vida é muito precioso. Dharma e Moksha não podem ser as únicas metas da vida, e fazem parte de todo um conjunto de propósitos dentro do Sanatana Dharma nos purusharthas. São aspectos que necessitam do suporte da riqueza material, e dos desejos, levados em reta conduta. No Bhagavad-gita, 7.11, Sri Krsna diz que o “desejo o qual não contrário ao dharma é de Sua natureza”. O Apastamba, outro texto importante, no sloka 11.8.7, 22-23, reitera o que é dito no Gita. Os estudiosos das escrituras indianas têm colocado as buscas da vida, como riqueza e desejos, dentro dos aspectos da vida comum das pessoas, dando os fundamentos da vida moral e ética. Também estabelecem uma harmonia nas relações entre os outros aspectos. A liberação final - moksha - é considerada a meta suprema da vida humana. Portanto, a pessoa deverá cumprir com os propósitos da vida dentro de valores morais, como verdade e não agressão (ahimsa), etc. Cada etapa da vida ou Varna asrama, acompanha um determinado cumprimento de dever ético. Assim, um estudante ou brahmacharya deverá cumprir com o seu dever de estudante celibatário; o chefe de família ou grihasta, deverá desfrutar da vida de casado e dividir harmoniosamente o que ganha para com os seus, e os que necessitem. Posteriormente, quando seus filhos estiverem criados, deverá então afastar-se da vida familiar tornando-se um vanaprastha, e posteriormente um sannyasi¸ um monge itinerante.

No Sanatana Dharma, tanto Moksa como Nirvana são sinônimos, e significam “liberação de nascimentos e mortes” ou liberação do samsara. Os Darshanas como Samkya, Yoga e Vedanta, etc., aceitam a palavra “moksa” como liberação, enquanto que visões distintas como Jainistas e Budistas usam a palavra Nirvana como aniquilação. Nirvan (निर्वाण) é derivada da raiz “nir”, significando ausência e “van” com o sentido de desejo ou vontade. Portanto, “nirvana” seria a superação de todos os tipos de desejos e vontades.

2. Ahimsa: não-agressão; a resistência que é contrária ao injusto ou contrária a não-retidão:

É importante compreender ahimsa, que no mais das vezes foi “traduzido” no Ocidente como, “não-violência”, confundindo-o com algum tipo de “pacifismo” sem reações. Mas o ponto chave de ahimsa é a relação entre justiça e injustiça; melhor seria de chamá-lo de "resistência pacífica", conforme defendia Mahatma Gandhi. Injustiça e justiça são conceitos amplos, e variáveis, contudo, ações que são contrárias ao dharma são consideradas injustas. O fato de a resistência contra o injusto ser ahimsa em si mesmo, nos ilustra muito bem se os justos devem ou não punir as pessoas que agem injustamente. A injustiça propositadamente ocasionada pelos outros não apenas causa a nossa infelicidade como o sofrimento de quem a pratica. É por isso que o comportamento injusto deve ser restringido. Se isso não for feito, teremos que suportar uma fração dos seus deméritos, decorrendo do comportamento do injusto. Tanto quanto possível, a conciliação é a ação aconselhada para resolver o conflito de interesses. Se esta não for possível, então o comportamento injusto deve ser punido conforme a lei vigente, considerando-se tempo, lugar e circunstâncias. A punição de uma pessoa injusta não equivale à violência. Um exemplo é alguém invadir a casa ou propriedade de outro; então o uso da força (até mesmo com as próprias mãos) será autorizado pelo Estado ou Governo, caso a pessoa negue-se a sair da ocupação ilegítima. A força as vezes é o único meio de estabelecer a justiça, mas isso não deve ser confundido com violência, que é, por exemplo, seguir agredindo uma pessoa que já está presa sem condições de reagir, etc.

Sri Manudeva
Em todo o caso, o uso da força necessária para restabelecer a justiça não significa no infligir de infelicidade, mas implica em algum dano contra o agente da injustiça. Quando um malfeitor é punido isso não o torna infeliz, mas o torna qualificado para a felicidade que é alcançada por seguir a justiça ou Dharma.

O conceito de não-agressão é claramente entendido quando não há mais confusão entre os termos “violência” e “não-violência”. No Mahabharata há as seguintes passagens:

के न हिंसन्ति जीवान्वै लोकेऽस्मिन् व्दिजसत्तम । 
बहु संचिन्त्य इति वै नास्ति कश्चिदहिंसक: ।। 
अहिंसायां तु निरता यतयो व्दिजसत्तम । 
कुर्वन्त्येव हि हिंसां ते यत्नादल्पतरा भवेत् ।। 
- महाभारत ३.२०८.३३-३४ 


Significado: “Óh! chefe entre os Brahmanas, quem neste mundo não atua em violência? Após pensar por sobre isso por muito tempo, parece que não há ninguém neste mundo que é não-violento. A violência ocorre nas mãos do asceta que de modo ardente se esforça por não-violência. De qualquer forma, o mínimo que eles fazem é o esforço contínuo para preveni-la”. Mahabharata, 3.208.33-34.

A não-violência não é um principio de Justiça, mas sim um mínimo de violência é princípio de justiça. Como no exemplo dado do uso da força, para recuperar a propriedade de alguém, as pessoas do Governo, nos postos os quais estão autorizados a usarem a força para recuperar o que foi ilegitimamente ocupado ou pego, atuam então com um mínimo de violência como parte de seu trabalho, mas isso é chamado dever. No sentido amplo, a violência ou exploração de alguém por outrem, ocorre mesmo no cultivo de uma lavoura, e nos atos do dia a dia é inevitável cometermos algum tipo de agressão. Os textos védicos dizem que este mundo é um mundo de exploração. Não há como, por exemplo, uma pessoa viver sem explorar outro ser vivo. Mesmo que alguém decidisse comer seus próprios dedos, isso não iria durar muito tempo, e cometeria algum tipo de violência contra si mesma. Portanto, ahimsa é um o esforço em atuar de tal modo a causar o mínimo de sofrimento possível, sendo então trilhado um caminho em busca do reto agir de forma permanente nas ações.

3. Adoração ao ídolo
A “religião védica” pura e original não incorpora a adoração a ídolos. Sem dúvida, a manifestação do dharma é destituída de qualquer idolatria, porque tão somente venera o Brahman Supremo, o Uno ou Absoluto, sem nome e sem forma; o Absoluto em Si mesmo, sendo, provavelmente, a mais antiga forma de religião de um Deus único jamais antes existente, e que foi aos poucos sendo incorporada pelas religiões hoje chamadas monoteístas. Aspectos como Indra, Varuna, Soma, etc., eram, na realidade, deidades que dirigiam aspectos dos eventos físicos visíveis, os quais ocorrem aqui e no universo. Mesmo os Vedas possuem versos em louvor a estas deidades das forças da natureza, descrevendo-as com formas humanas. Como os Vedas têm origem no povo Ariano ou Persa, a monolatria (originalmente praticada pelos hebreus, por exemplo), passou aos poucos a fazer parte do "hinduismo". Nos Upanisads, o conceito de parabrahman (Brahmam Supremo) torna-se profundamente enraizado na Sua contemplação (nididhyas), tornando-se o único modo de adoração sem nenhuma outra coisa mais. Com o passar do tempo, principalmente devido ao Tantra, filosofias arianas e não arianas se misturaram, dando então surgimento a “religião hindu” que hoje conhecemos, iniciando-se a adoração ritualística de Deus em diferentes formas. Os hindus aceitam a adoração ritualística do Linga (falo divino) advinda da cultura Sindhu. No entanto, a adoração de ídolos com forma humana deu origem a outras deidades. Para o homem médio, tornou-se difícil a adoração sem forma, e imanifesta (nirguna) do Deus Supremo; portanto, os adoradores da forma manifesta ou saguna, fez-se necessária, tendo então ídolos, tornando-se um caminho de adoração ritualística de deidades. Também encontramos segmentos henoteísmo entre os hindus, principalmente as seitas mais recentes como Hare Krishna e outros, os quais crêem num Deus Supremo, mas aceitando a existência de outros deuses e semideuses que controlam as chuvas, raios, etc. No mais das vezes, o hinduismo dos dias atuais é Monoteísta - só há um único e mesmo Deus, e Monista (unidade da realidade como um todo).

4. Sadhana: diferentes tipos de práticas espirituais
O potencial de cada individuo é variável, então dentro do Sanatana Dharma não é recomendado um único caminho de adoração e de apenas uma única deidade para a grande massa. Também, cada um deverá encontrar seu ishta devata ou forma particular de adoração. Deverá render-se a um guru ou mestre espiritual que lhe dê orientações seguras a partir da sua autorrealização pessoal. Somente pessoas muito realizadas conseguem adorar na forma sem forma. O cap. 12 do Gita inicia com uma pergunta de Arjuna para Krsna questionando quem está mais unido a Verdade, aqueles que se dedicam ao imanifesto, sem forma, ou aqueles que se ligam ao manifesto, com forma. O elo comum entre as duas formas de adoração ao Supremo ou Absoluto é a reta conduta. Também, no Bhagavad-gita 7.21, está dito, “Eu firmo a fé do devoto numa deidade particular, a qual ele deseje adorar com fé”. Desta forma, a difusão da religião hindu circunda todo o vasto universo, porque aceita tudo o que é positivo no caminho do devoto, uma vez que não fira o Dharma.

5. Céu e inferno
Ninguém experimenta os bons ou os maus resultados das ações adquiridos num nascimento em particular do que o próprio nascimento em si mesmo; portanto, o conceito de céu e de inferno (de resultados invisíveis) estão acontecendo aqui e agora com qualquer um incorporado. Não se tratam de nenhuma região em particular, personalizadas em religiões institucionais.

6. Samsara: nascimentos e mortes repetitivos
Os hindus creem que, baseado nas ações realizadas em nascimentos anteriores, uma pessoa pega diferentes tipos de yoni ou ventres. A doutrina do ‘karma’ (ação) diz que alguém está diante do resultado dos méritos e deméritos feitos nestes nascimentos nos nascimentos futuros. De forma semelhante, alguém experimenta felicidade e tristeza neste nascimento, baseado no que foi acumulado (sanchit) em vidas passadas. Ninguém pode escapar dos resultados das ações. Todos os seguimentos dentro da religião hindu aceitam o conceito de que a alma segue através de um ciclo de nascimentos e mortes. A liberação deste ciclo ou do samsara chama-se Moksa. Os caminhos que garantem a liberação de um buscador são o Karmayoga, ou caminho da ação; o Jñanayoga ou caminho do conhecimento, e o Bhaktiyoga, caminho da devoção. Contudo, sem conhecimento ou jñana, por mais que uma pessoa se esforce, seja boa, e faça o bem, não alcança o conhecimento. Por isso é dito que toda a ação, karma, deve ser feita através do conhecimento amoroso (jnana-bhakti) do Supremo.

7. Mukti: a liberação durante a vida incorporada (sadeha mukti)
Uma pessoa pode mergulhar no Absoluto completamente, mesmo enquanto esteja viva. Não é necessário sofrimento ou coisas do gênero para alguém liberar-se. a liberação dá-se através do conhecimento da Verdade Suprema. O buscador deverá realizar que é o puro Atma, ou Ser, (uma alma que está tendo experiência materiais, e não um corpo que possui uma alma), então assim estará liberto, mesmo que esteja num corpo materialmente temporário.

Hari om tat sat